Imóvel rural - Aquisição por estrangeiro - Usucapião - Modo originário de aquisição da propriedade - Inaplicabilidade das restrições previstas na Lei n.° 5.709/1971 e no Decreto n.° 74.965/1974.
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,
M. e J., todos portugueses, adquiriram, mediante usucapião, ao lado de outras pessoas físicas, brasileiras, o bem imóvel identificado na matrícula n.°..... do 18° Oficial de Registro de Imóveis desta Capital (fls. 07/09 e 23/25).
Com a declaração de domínio, por meio de acórdão transitado em julgado no dia 22 de maio de 2009, proferido nos autos do processo n.° 583..............., que tramitou pela 2ª Vara de Registros Públicos desta Capital, a área usucapida, destacada da matrícula n.°.... do 18° Oficial de Registro de Imóveis desta Capital (averbação n.° 04 - fls. 0406), ensejou a abertura de nova matrícula, acima especificada.
Provocado, à vista das restrições previstas na Lei 5.709/1971 e no Decreto n.° 74.965/1974 (fls. 15), o Oficial Registrador, após informar o cumprimento do princípio da especialidade subjetiva - inclusive por meio da averbação n.° 02, lançada na matrícula n.° (fls. 23/25) -, a realização do cadastramento especial e da comunicação exigidos, sustentou a desnecessidade de qualquer outra regularização, porque, diante do modo de aquisição, prescindível a prévia autorização do INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (fls. 21/22 e 33/36).
É o relatório.
OPINO.
A Constituição Federal de 1988 dispôs, no artigo 190, que "a lei regulará e limitará a aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional" (grifo meu).
De acordo com o § 2.° do artigo 1.° da Lei n.° 5.709/1971, recepcionada pela nova ordem constitucional, as restrições estabelecidas em tal lei não se aplicam aos casos de sucessão legítima, salvo se o imóvel rural incorporado por pessoa física estrangeira residente no Brasil estiver situado em área considerada indispensável à segurança nacional.
Quer dizer: excepcionada a situação ventilada na expressa ressalva legal, a aquisição de bem imóvel rural por pessoa física estrangeira independerá de autorização ou licença, se decorrente de sucessão legítima, operada, assim, por força de lei. E, aqui, a dimensão territorial do terreno será, sob qualquer aspecto, irrelevante.
Regulamentando a Lei n.° 5.709/1971, o Decreto n.° 74.965/1974, no § 2.° do seu artigo 1.°, previu que as restrições instituídas às aquisições de bem imóvel rural por pessoa física estrangeira residente no Brasil não se aplicam aos casos de transmissão causa mortis.
Ou seja, ampliou - em alargamento promovido por preceito regulamentar de duvidosa validade, insuscetível de ser examinada, porém, no campo administrativo, para abranger a sucessão testamentária, fundada em negócio jurídico e, portanto, no princípio da autonomia privada - as hipóteses que dispensam a autorização do INCRA e aprovação do projeto de exploração correspondente.
Além disso, ao concretizarem o comando emergente do texto constitucional, disciplinando e regulamentando as restrições impostas aos estrangeiros, quanto ao acesso à propriedade imobiliária rural, tanto a lei especial como o decreto regulamentador, ambos acima mencionados, revelam que as limitações se aplicam somente às aquisições, por ato inter vivos, a título derivado.
A par de estranhas às transmissões causa mortis, consoante já sinalizado, também o são às aquisições originárias da propriedade imobiliária rural, conforme evidenciam, a propósito, o artigo 8.° da Lei n.° 5.709/1971 e o artigo 3.° do Decreto n.° 74.965/1974, ao assinalarem que "na aquisição de imóvel rural por pessoa estrangeira, física ou jurídica, é da essência do ato a escritura publica."
Aliás, a norma extraída de tais disposições, ao tratar da escritura pública, como título translativo da substância do negócio jurídico, tem, na situação em apreço, especial relevância, porquanto a usucapião, em qualquer de suas modalidades (extraordinária, ordinária, pro labore ou pro moradia), modo originário de aquisição da propriedade , não advindo de uma transmissão voluntária do direito real, dela independe para restar aperfeiçoado. A sentença, na usucapião, é meramente declaratória de um direito de propriedade preexistente. Tampouco, além do mais, o seu registro é constitutivo do direito real. Ambos, sentença e registro, malgrado úteis, visam, especialmente, à regularização e à publicidade de uma situação consolidada, revelada pela posse qualificada prolongada no tempo, à qual se somam outros requisitos, próprios de cada uma de suas espécies, indiferentes, contudo, à autorização do INCRA.
Logo, na hipótese vertente, é dispensável, de fato, a prévia autorização do INCRA, requisito inexigível para a válida aquisição da propriedade imobiliária rural mediante usucapião, ainda que por pessoa estrangeira.
Agora, o descarte das restrições legais não libera os registradores do cadastramento especial e das comunicações referidos nos artigos 10 e 11 da Lei n.° 5.709/1971 e nos artigos 15 e 16 do Decreto n.° 74.965/1974.
Tais procedimentos, com efeito, não se qualificam como restrições, mas se destinam a permitir o controle das áreas rurais em poder de estrangeiros, inclusive para os fins do artigo 12 da Lei n.° 5.709/1971 e do artigo 5.° do Decreto n.° 74.965/1974.
Pelo todo exposto, o parecer que, respeitosamente, submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de que:
a) as restrições estabelecidas na Lei n.° 5.709/1971 e no Decreto n.° 74.965/1974 não se aplicam à usucapião, em qualquer das suas espécies, que, no entanto, contemplando aquisições por estrangeiros, exigirá, com o registro do título declaratório da propriedade, o cadastramento especial e as comunicações tratados nos artigos 10 e 11 da Lei n.° 5.709/1971 e nos artigos 15 e 16 do Decreto n.° 74.965/1974; e
b) a aquisição da propriedade imobiliária rural aqui enfrentada, consumada mediante usucapião, objeto da matrícula n.° .... do 18° Oficial de Registro de Imóveis desta Capital, prescinde da regularização anteriormente determinada e, particularmente, da autorização do INCRA, ainda que três dos proprietários sejam pessoas físicas estrangeiras (fls. 07/09 e 23/25).
Sub censura.
São Paulo, 20 de abril de 2012.
Luciano Gonçalves Paes Leme
Juiz Assessor da Corregedoria
1 Não se desconhece a posição de Caio Mário da Silva Pereira, que considera originária a aquisição apenas "quando o indivíduo, num dado momento, torna-se dono de uma coisa que jamais esteve sob o senhorio de outrem ", de modo a sustentar, assim, que a usucapião é modo derivado de aquisição da propriedade, pois "pressupõe a perda do domínio por outrem, em beneficio do usucapiente", mas com a ressalva, oportuna, de faltar-lhe, "sem a menor dúvida, a circunstância da transmissão voluntária, ordinariamente presente na aquisição derivada" (Instituições de Direito Civil: direitos reais, 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 118. v. IV.). De qualquer forma, alinha-se, aqui, no ponto sob exame, com o entendimento de outros doutrinadores, que, enquadrando, na moldura das aquisições derivadas, somente as situações onde existente uma relação pessoal entre o adquirente e o precedente titular do direito real, compreende a usucapião como modalidade de aquisição originária, porque ausente um nexo causal entre o passado, o estado jurídico anterior, e a situação atual (Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil: direito das coisas. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 124; Arnaldo Rizzardo. Direito das coisas, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 247; Marco Aurélio S. Viana. Comentários ao novo Código Civil: dos direitos reais. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 72. v. XVI; Gustavo Tepedino; Heloísa Helena Barboza; Maria Celina Bodin de Moraes. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República: direito de empresa e direito das coisas. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 519; Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil brasileiro: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23. Durval Ferreira. Posse e usucapião. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 462; Francisco Eduardo Loureiro. Código Civil comentado. Ministro Cezar Peluso (coord.), 2ª ed. São Paulo: Manole, 2008, p. 1.161).
DECISÃO
Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, determino:
a) as restrições estabelecidas na Lei n° 5.709/1971 e no Decreto n° 74.965/1974 não se aplicam à usucapião, em qualquer das suas espécies, que, no entanto, contemplando aquisições por estrangeiros, exigirá, com o registro do título declaratório da propriedade, o cadastramento especial e as comunicações tratados nos artigos 10 e 11 da Lei n° 5.709/1971 e nos artigos 15 e 16 do Decreto n° 74.965/1974; e
b) a aquisição da propriedade imobiliária rural por meio de usucapião, determinante da abertura da matrícula n°..... do 18º Oficial de Registro de Imóveis desta Capital, prescinde da regularização anteriormente determinada (fls. 15) e, particularmente, da autorização do INCRA, ainda que três dos proprietários, sejam pessoas físicas estrangeiras (fls. 07/09 e 23/25).
Publique-se.
São Paulo, 16 de maio de 2012.
JOSÉ RENATO NALINI
Corregedor Geral da Justiça
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Ref. CGJSP - Processo 488/2011, Des. José Renato Nalini, j.16/05/2012.
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