Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro¹
1. Premissas de compreensão
O direito registral imobiliário encontra desafios sensíveis nos casos de casamentos de brasileiros celebrados no exterior. O estabelecimento formal de um regime de bens ignora barreiras geográficas transnacionais e exige cautela do Oficial Predial para que a segurança jurídica dos negócios imobiliários não seja abalada.
O tema, em verdade, perpassa pelo que se denomina de adaptação do direito estrangeiro.² Nada mais é do que um expediente técnico para que o operador do direito possa solucionar os problemas derivados da aplicação parcial de várias leis. No caso telado do regime de bens há aproximação acentuada do direito registral com o direito internacional privado.
No Brasil o tema é regido pela norma de conexão estabelecida pelo art. 7º, § 4º da LINDB, que reza: "o regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal".
2. Registro Civil e produção de efeitos jurídicos no Brasil
Para produzir efeitos no Brasil é indispensável que o casamento de brasileiro celebrado no exterior esteja devidamente registrado no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais. É o que exige a Lei 6.015/1973:
Art. 32. Os assentos de nascimento, óbito e de casamento de brasileiros em país estrangeiro serão considerados autênticos, nos termos da lei do lugar em que forem feitos, legalizadas as certidões pelos cônsules ou quando por estes tomados, nos termos do regulamento consular.
§ 1º Os assentos de que trata este artigo serão, porém, transladados nos cartórios de 1º Ofício do domicílio do registrado ou no 1º Ofício do Distrito Federal, em falta de domicílio conhecido, quando tiverem de produzir efeito no País, ou, antes, por meio de segunda via que os cônsules serão obrigados a remeter por intermédio do Ministério das Relações Exteriores.
Especialmente no que concerne aos requisitos para este registro especial no Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais, a norma de regência é a Resolução CNJ 155/2012, destacando-se no que aqui importa:
Art. 13. O traslado do assento de casamento de brasileiro ocorrido em país estrangeiro deverá ser efetuado mediante a apresentação dos seguintes documentos:
a) certidão de assento de casamento emitida por autoridade consular brasileira ou certidão estrangeira de casamento legalizada por autoridade consular brasileira e traduzida por tradutor público juramentado;
b) certidão de nascimento do cônjuge brasileiro, ou certidão de casamento anterior com prova da sua dissolução, para fins do artigo 106 da Lei nº 6.015/1973;
c) declaração de domicílio do registrando na Comarca ou comprovante de residência/domicílio, a critério do interessado. Na falta de domicílio no Brasil, o traslado deverá ser efetuado no 1º Ofício do Distrito Federal; e
d) requerimento assinado por um dos cônjuges ou por procurador.
§ 1º Se o assento de casamento a ser trasladado referir-se a brasileiro naturalizado, será obrigatória também a apresentação do certificado de naturalização ou outro documento que comprove a nacionalidade brasileira.
§ 2º A omissão do regime de bens no assento de casamento, lavrado por autoridade consular brasileira ou autoridade estrangeira competente, não obstará o traslado.
§ 3º Faculta-se a averbação do regime de bens posteriormente, sem a necessidade de autorização judicial, mediante apresentação de documentação comprobatória.
§ 4º Deverá sempre constar do assento e da respectiva certidão a seguinte anotação: "Aplica-se o disposto no art. 7º, § 4º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942".
§ 5º Na eventual existência de pacto antenupcial, lavrado perante autoridade estrangeira competente, o oficial de registro civil deverá, antes de efetuar o traslado, solicitar que os interessados providenciem o seu registro em cartório de registro de títulos e documentos no Brasil, alertando-os que o documento deverá estar previamente legalizado por autoridade consular brasileira e tenha jurisdição sobre o local em que foi emitido e traduzido por tradutor público juramentado.
§ 6º A omissão do(s) nome(s) adotado(s) pelos cônjuges após o matrimônio no assento de casamento ocorrido em país estrangeiro não obstará o traslado.
§ 7º Nesse caso, deverão ser mantidos os nomes de solteiro dos cônjuges. Faculta-se a averbação posterior, sem a necessidade de autorização judicial, mediante apresentação de documentação comprobatória de que os nomes foram modificados após o matrimônio, em conformidade com a legislação do país em que os nubentes tinham domicílio, nos termos do art. 7 do Decreto-Lei nº 4.657/1942.
§ 8º A omissão no assento de casamento ocorrido em país estrangeiro de outros dados previstos no art. 70 da Lei nº 6.015/1973 não obstará o traslado.
§ 9º Os dados faltantes poderão ser inseridos posteriormente por averbação, mediante a apresentação de documentação comprobatória, sem a necessidade de autorização judicial.
§ 10 Os casamentos celebrados por autoridades estrangeiras são considerados autênticos, nos termos da lei do local de celebração, conforme previsto no caput do art. 32 da Lei nº 6.015/1973, inclusive no que respeita aos possíveis impedimentos, desde que não ofendam a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes, nos termos do art. 17 do Decreto nº 4.657/1942.
§ 11 O traslado no Brasil, a que se refere o § 1º do referido artigo, efetuado em Cartório de 1º Ofício, tem o objetivo de dar publicidade e eficácia ao casamento, já reconhecido válido para o ordenamento brasileiro, possibilitando que produza efeitos jurídicos plenos no território nacional.
É a certidão do registro no Livro "E" do Ofício de Registro Civil que servirá de prova do casamento de brasileiro celebrado no exterior. Dito de outro modo, sem este documento público, os efeitos jurídicos no Brasil ficam prejudicados.
3. Aquisição de imóvel e o regime de bens quando o domicílio conjugal for no estrangeiro
Pela norma do art. 7, § 4º, da LINDB se o domicílio dos nubentes foi estabelecido em país estrangeiro será pela lei daquela nação que regular-se-á o estatuto patrimonial do brasileiro casado fora do Brasil.
Aqui surge o nó górdio. Cada país tem sua maneira de regular a matéria, por vezes muito próxima do arcabouço jurídico brasileiro, mas em muitos casos de modo muito distante, sem qualquer equivalência. À guisa de ilustração, em países que adotam o Common Law é comum a apresentação de certidão ou atestado consular de regime de bens sem equivalência no Brasil.
De qualquer sorte, é inconcebível que se registre aquisição de direito real sobre bem imóvel sem que se esclareça o regime de bens do adquirente casado no exterior. Nesse sentido, as Normas de Serviço da CGJ-SP:
61.4. Tratando-se de brasileiros ou de estrangeiros casados no exterior, para evitar dúvida acerca da real situação jurídica dominial do imóvel, o regime de bens deve ser desde logo comprovado para constar do registro.
É recomendável, como visto, que o traslado do assento de casamento estrangeiro feito no Livro E do Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais já esclareça o regime de bens adotado e, se houver, a existência de convenção nupcial. Mas nem sempre isso é possível, quando então deverá o Oficial de Registro de Imóveis exigir que as partes providencie documento oficial que demonstre o estatuto patrimonial aplicável à hipótese. Normalmente essa prova é feita por meio de atestado ou certificação consular.
Ivan Jacopetti do Lago bem sintetiza a complexidade da atuação do registrador predial, ao partir da análise do art. 7º, § 4º, da LINDB:
Assim, se alguém é proprietário de um bem imóvel situado no Brasil, vem a ter domicílio no exterior, e se casa; ou, se após fazê-lo, adquire imóvel no Brasil; deverá o registrador aplicar, quanto ao regime de bens, a lei do domicílio, ou do primeiro domicílio conjugal, quando diverso.
Mais concretamente, isso será relevante para se determinar se, quando do casamento, houve ou não comunicação; se a disposição do bem, ainda que particular, exige consentimento do cônjuge; e como se dá, naquele matrimônio, a sucessão hereditária.
De maneira geral, serão essas as regras do Direito Estrangeiro que o registrador deverá, com os meios já tratados neste trabalho, investigar. Mas, para fazê-lo, deverá o registrador primeiramente determinar qual é o regime de bens aplicável, entre os disponíveis no Direito Estrangeiro em questão.³
4. O tema na jurisprudência
4.1. Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo (CGJ-SP)
Escritura de compra e venda de imóveis – Exigência da anuência do cônjuge da vendedora, cujo casamento foi celebrado na Itália sob o regime de separação de bens por opção dos contraentes e independentemente de pacto antenupcial, de acordo com a legislação vigente – Observância ao artigo 7º, “caput”, e §4º, da Lei de Introdução ao Código Civil e artigo 32, “caput”, e §1º, da Lei de Registros Públicos – Prevalência da regra da incomunicabilidade de bens – Exigência indevida – Recurso provido. (CGJSP - Processo 168.591/2013, Des. Hamilton Elliot Akel, j.15/04/2014). Acesse aqui: http://kollsys.org/ekc.
4.2. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo (CSM-SP)
Escritura de doação. Doadora que figura no registro como casada pelo regime da separação de bens e, na escritura, como viúva. Aquisição onerosa da doadora e óbito de seu ex-esposo ao tempo da vigência do Código Civil de 1916. Aplicação do artigo 259 do Código Civil antigo, conforme a orientação jurisprudencial consolidada (Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal), nada obstante realizado o casamento no exterior, com regime da separação de bens segundo a lei estrangeira. Necessidade de prévia partilha do bem ou, diante de cessão de direitos hereditários, de adjudicação no juízo do inventário, em respeito ao princípio de continuidade. Apelação provida. Recurso adesivo prejudicado. (CSMSP - Apelação Cível 498-6/3, Rel. Des. Gilberto Passos de Freitas, j. 23/03/2006). Acesse aqui: http://kollsys.org/8og
Doação com reserva de usufruto – Imóvel adquirido a título oneroso, na vigência do Código Civil de 1916, por pessoa casada em regime de separação de bens – Casamento realizado em país estrangeiro – Inexistência de prova de que o regime de bens adotado decorreu de convenção entre os nubentes, e de que prevista a não comunicação dos aquestos – Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal – Comunicação dos aquestos decorrente da presunção da existência de esforço na aquisição – Falecimento do marido sem que promovido o inventário e a partilha do imóvel, ou que promovida a sua exclusão da partilha por se tratar de bem particular da esposa – Afronta ao princípio da continuidade – Apelação não provida. (CSMSP - Apelação Cível 1000893-93.2018.8.26.0114, Rel. Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j.27/08/2019). Acesse aqui: http://kollsys.org/nwx
4.3. Superior Tribunal de Justiça
Apesar de o casamento haver sido contraído pelo regime da separação de bens no exterior, os bens adquiridos na constância da vida comum, quase à totalidade transcorrida no Brasil, devem se comunicar, desde que resultantes do esforço comum. Exclusão, portanto, do patrimônio existente em nome da viúva, obtido pelo labor individual, doação ou herança, incorporando-se os demais ao espólio do cônjuge varão, para partilha e meação, a serem apurados em ação própria. (STJ - REsp 123.633/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, Quarta Turma, j. 17/03/2009).
5. Caso concreto enfrentado: casamento na Bélgica e implicações nas aquisições imobiliárias no Brasil
Uma brasileira, casada com um belga na Bélgica, adotou o régime de la séparation de biens pure et simple, ou seja, um regime de bens previsto na legislação belga que mantém a regra da incomunicabilidade dos bens. Na constância do casamento, ela comprou um imóvel no Brasil.
A pergunta que se coloca é: o cartório de registro imóveis deve ou não exigir o registro de pacto antenupcial (ou de instrumento estrangeiro equivalente) no livro 3 no caso de casamentos realizados no exterior, com adoção de regime de bens em consonância com a lei brasileira?
A resposta deve ser negativa. Isso, porque entendemos que a exigência de registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de Imóveis do domicílio do casal é apenas para caso de regimes de bens regidos pela legislação brasileira. Não se aplica para regime de bens regidos pela lei estrangeira.
De fato, no caso de casamento em situações transnacionais, o regime de bens será regido pela lei do primeiro domicílio do casal (se os nubentes tiverem domicílios diversos), conforme art. 7º, § 4º, da LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942).
No exemplo em pauta - em que uma brasileira domiciliada no Brasil se casou com um belga -, o primeiro domicílio do casal foi a Bélgica. Logo, o regime de bens a orquestrar esse casamento será o da legislação belga. Daí se se segue que não se pode aplicar a ele regras formais extensíveis apenas a regimes de bens da legislação brasileira, como a exigência de registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis do casal.4
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O autor é registrador imobiliário no estado de São Paulo. Atualmente exerce a delegação do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil das Pessoas Jurídicas e Civil das Pessoas Naturais da Comarca de Pedreira/SP. Pesquisador e autor de Direito Registral Imobiliário.
O tema é estudado com profundidade pelo civilista Carlos Eduardo Elias de Oliveira: Disponível na coluna do Portal Migalhas, coluna direito privado estrangeiro. Confira aqui.
LAGO, Ivan Jacopetti do. A cognição do direito estrangeiro pelo registrador de imóveis brasileiro: o caso do regime de bens estrangeiro. Revista de Direito Imobiliário. vol. 93. ano 45. p. 141-159. São Paulo: Ed. RT, jul.-dez. 2022.
OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de: Registro de "pacto antenupcial" envolvendo casamento no exterior: Exemplo de casamento na Bélgica. Confira aqui.
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