Em pedagógico precedente, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, em voto-condutor do Corregedor Geral da Justiça, des. Francisco Loureiro, estabeleceu importantes balizas a respeito da usucapião como modo de aquisição da propriedade.
Com objetividade, foram enfrentados os seguintes temas:
1)- A existência de outras vias para aquisição da propriedade não impede a usucapião;
2)- Possibilidade de usucapião de bem próprio como instrumento de regularização da propriedade;
3)- Efeitos da usucapião no registro de imóveis como modo de aquisição originária;
4)- Diferença entre acessio e sucessio possessionis; e
5)- Cautelas na análise de usucapião entre herdeiros.
Passa-se ao conteúdo do voto em cada um desses itens.
1)- A existência de outras vias para aquisição da propriedade não impede a usucapião
Inicialmente é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n. 6.015/73, pelo Provimento n. 65/17 do CNJ e pela Seção XII do Cap. XX das NSCGJ.
É preciso entender o seguinte: desde as fontes romanas a usucapião é não somente modo originário pela posse que se converte em propriedade, mas também modo de sanar os vícios de propriedade imperfeita adquirida a título derivado.
Disso decorre a faculdade de o interessado, salvo marcada fraude à lei, almejar a regularização de seu título aquisitivo mediante o requerimento de inúmeros alvarás e abertura de diversos inventários, ou pleitear a usucapião, fundado em sua posse qualificada e prolongada.
Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.
2)- Possibilidade de usucapião de bem próprio como instrumento de regularização da propriedade
A usucapião, por sua vez, desde as fontes romanas, é modo não só de aquisição de propriedade, mas também de saneamento dos vícios de propriedade ou de outros direitos reais adquiridos a título derivado.
Em termos diversos, constitui eficaz instrumento de consertar o domínio derivado imperfeito (cfr. Lenine Nequete, Da Prescrição Aquisitiva, Sulina, 1.954, p. 21).
Isso decorre do fato de a usucapião ser modo originário de aquisição da propriedade, em que não há relação pessoal entre um precedente e um subsequente sujeito de direito.
Na lição precisa de Benedito Silvério Ribeiro, obra mais completa já escrita sobre o tema, em determinados casos, desde que justificados, cabível é a usucapião tabular ajuizada por quem já é titular do registro a título derivado, mas que padece de alguma imperfeição: "tem-se dito, e a jurisprudência dos tribunais pátrios endossa o entendimento, de que a ação de usucapião não compete apenas ao possuidor sem título algum de propriedade, mas também àquele que o tenha, todavia, insuscetível de assegurar-lhe o domínio" (Tratado de Usucapião, V. 1, p. 209).
Entre os inúmeros exemplos dados por Benedito Silvério Ribeiro estão os casos de imóveis com descrições absolutamente imprecisas ou adquiridos em partes ideais sem controle das frações, de modo que inviável remontar o todo na esfera retificatória.
O Superior Tribunal de Justiça assentou também que "é cabível ação de usucapião por titular do domínio que encontra dificuldade, em razão de circunstâncias ponderáveis, para unificar as transcrições ou precisar área adquirida escrituralmente" (REsp 292.356- SP, Rel. Min. Menezes Direito).
E não há óbice ao acolhimento do pedido de usucapião entre condôminos ou entre comunheiros.
O entendimento dos tribunais é no sentido de que cabe usucapião entre condôminos no condomínio tradicional ou na comunhão da herança desde que seja o condomínio pro diviso, com posses localizadas sobre partes certas do imóvel, ou haja posse exclusiva de um condômino/herdeiro sobre a totalidade da coisa comum.
Exige-se, em tal caso, que a posse seja inequívoca, que se manifeste claramente aos demais condôminos durante todo o lapso temporal exigido em lei. Deve estar evidenciado aos demais comunheiros que o usucapiente não reconhece a soberania alheia ou a concorrência de direitos sobre a coisa comum, a fim de evitar surpresas.
O que não se admite é que situações equívocas, nas quais um dos coerdeiros ocupa com exclusividade o imóvel com aquiescência dos demais, de repente se convertam em propriedade, sem dar oportunidade aos condôminos de interromperem a prescrição aquisitiva.
Na lição clássica de Lenine Nequete, "a posse do condômino é quase sempre equívoca, quando pretende ele haver gozado com exclusividade a coisa indivisa. Para invocar utilmente a prescrição, será preciso, como diz um aresto da Corte de Dijon, que ele, através de atos exteriores e contraditórios, agressivos e perseverantes, tenha colocado os demais associados em mora na defesa de seus direitos; de outra forma, ele se reputará representar a comunhão e gozar, em virtude do título, não só para si, mas para a sociedade" (Da Prescrição Aquisitiva, Livraria Sulina, 1.954, p. 86; no mesmo sentido, a lição de Benedito Silvério Ribeiro, Tratado de Usucapião, Saraiva, v. 1, p. 251).
Logo, o mero fato de serem as partes coerdeiras e condôminas, por si só, não impede que se reconheça o exercício da posse ad usucapionem sobre o imóvel comum.
3)- Efeitos da usucapião no registro de imóveis como modo de aquisição originária
O direito do usucapiente não se funda sobre o direito do titular precedente, não constituindo este direito o pressuposto daquele, muito menos lhe determinando a existência, as qualidades e a extensão.
São efeitos do fato da aquisição a título originário:
a) desnecessidade de recolhimento do imposto de transmissão quando do registro;
b) o título ingressa no registro independentemente de registro anterior, ou seja, constitui exceção ao princípio da continuidade e mitigação ao princípio da especialidade registrárias;
c) os direitos reais limitados e eventuais defeitos que gravam ou viciam a propriedade não se transmitem ao usucapiente;
d) caso resolúvel a propriedade, o implemento da condição não resolve a propriedade plena adquirida pelo usucapiente.
4)- Diferença entre acessio e sucessio possessionis
Por força da regra prevista no artigo 1.243 do Código Civil, é permitido ao possuidor, para perfazer o tempo necessário à consumação da usucapião, que some à posse própria a posse de seus antecessores, quer a transmissão se dê a título inter vivos (acessio possessionis), quer se dê a título causa mortis (sucessio possessionis):
"Art. 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé".
A norma em questão remete o leitor ao artigo 1.207 do Código Civil, para correto entendimento do que se entende por aquisição a título universal e a título singular e sua interação com as figuras da accessio e da sucessio possessionis.
Na sucessio possessionis, a transmissão se opera ex lege. A posse é uma, de modo que não pode o possuidor atual descartar a posse do transmitente porque maculada por vícios que não lhe convêm.
Em termos diversos, não pode o sucessor inaugurar um novo período possessório, desprezando a posse de seu antecessor. Se a posse do falecido era ad usucapionem, tanto melhor para o herdeiro, que poderá aproveitar o período anterior para completar o prazo exigido em lei.
Se, porém, a posse era viciada, contamina automaticamente a posse do sucessor, ainda que este esteja de boa-fé, pois o que se transmite é o direito de continuar a posse do autor da herança.
Como diz Benedito Silvério Ribeiro, "o tempo do herdeiro carrega os vícios e virtudes da posse do morto" (Tratado de usucapião, 3. Ed. São Paulo, Saraiva, 2003, p. 749).
Note-se apenas que não pode um herdeiro, isoladamente, aproveitar o período de posse do autor da herança para completar o lapso temporal da usucapião em detrimento dos demais herdeiros.
Em termos diversos, o tempo de posse do falecido deve beneficiar indistintamente a todos seus herdeiros.
Caso deseje um herdeiro usucapir isoladamente o imóvel, o termo inicial de sua posse exclusiva somente pode ser contado a partir da morte do antecessor comum.
Na accessio possessionis, o adquirente recebe nova posse, podendo juntá-la ou não à posse anterior.
Cuida-se de mera faculdade do possuidor, que pode ou não acrescer o tempo do antecessor, levando em conta suas qualidades e seus vícios. A situação é diversa da sucessio possessionis e exige três requisitos: continuidade, homogeneidade e vínculo jurídico.
As posses a serem somadas devem ser contínuas, sem interrupção ou solução; devem ser homogêneas, terem as mesmas qualidades, para gerar os efeitos positivos almejados. Deve haver, finalmente, um vínculo jurídico entre o possuidor atual e o anterior. Esse vínculo pode revestir-se de várias modalidades, por exemplo, um negócio jurídico ou uma arrematação em hasta pública.
5)- Cautelas na análise de usucapião entre herdeiros
Como se sabe, pelo princípio da saisine, os herdeiros recebem o acervo hereditário desde a abertura da sucessão, o qual será indivisível até a finalização da partilha, seguindo as normas relativas ao condomínio (artigos 1.784 e 1.791 do Código Civil).
Assim, a posse sobre os bens do autor da herança é transmitida a todos os seus herdeiros, independentemente de qualquer ato.
Deste modo, poderiam as requerentes seguir por dois caminhos: o primeiro pela regularização do registro da partilha, conforme bem apontado pela MM. Juíza Corregedora Permanente (fl. 538); o segundo seria regularizar o domínio por esta via da usucapião.
A opção foi pelo segundo caminho que, a princípio e como visto, não encontra óbice no ordenamento jurídico.
Vale reiterar que a eventual ausência de registro da partilha feita em inventário dos bens deixados pelos proprietários tabulares não obsta o reconhecimento da usucapião, que se funda na posse e não na condição de herdeiro.
Em outros termos, caso se demonstre de forma inequívoca que as requerentes exercem posse exclusiva e com animus domini sobre o imóvel usucapiendo pelo prazo legal, o pedido pode e deve ser acolhido.
Resta analisar, portanto, se as requerentes preenchem os requisitos da usucapião extraordinária.
Em qualquer modalidade de usucapião, dois elementos estão sempre presentes: a posse e o tempo.
A posse deve assumir natureza ad usucapionem, ou seja, deve ser qualificada por continuidade, pacificidade e animus domini.
A posse há que ser, na dicção da lei, sem oposição ou pacífica. Pacífica não se opõe à posse violenta, mas à posse incontestada. A oposição eficaz parte de interessados, em especial do titular da propriedade ou de outros direitos reais, contra quem corre a usucapião.
Em relação ao animus domini, a par de divergências doutrinárias acerca de seu exato sentido, predomina a corrente que entende o animus estar essencialmente ligado à causa possessionis, à razão pela qual se possui, não constituindo elemento meramente subjetivo.
Assim, possui a coisa como sua quem não reconhece a supremacia do direito alheio. Ainda que saiba pertencer a coisa a terceiro, o usucapiente se arroga soberano e repele a concorrência ou a superioridade do direito de outrem sobre a coisa.
A par do caráter ad usucapionem, a posse deve se prolongar em determinado período, findo o qual o domínio do imóvel reputa-se imediatamente adquirido pelo possuidor, de forma originária. Em se tratando de usucapião extraordinária, observa-se o prazo de 15 anos, a teor do artigo 1.238 do Código Civil, ou 10 anos se o bem for utilizado para moradia ou produção.
Assim, deve-se comprovar não só o período de posse, mas também sua qualidade, com indicação de que foi exercida com exclusividade sobre o imóvel, com a inequívoca ciência dos coerdeiros acerca da intenção da parte requerente, a quem incumbe a prova cabal de que possui o imóvel há mais de 15 anos ou mais de 10 anos, no caso de posse-trabalho, com inequívoca oposição do animus domini aos demais condôminos.
No caso concreto, no momento da morte do proprietário Avelino Gomes, em 30 de dezembro de 1980 (fl. 170), o qual já era viúvo de Maria Nogueira Gomes, falecida em 20 de outubro de 1977 (fls. 148), a posse e a propriedade do imóvel transmitiram-se automaticamente, por força da saisine, a seus herdeiros: João Gomes (casado com a requerente Maria Izete Gomes - fl. 41), Avelino Gomes (fl. 226) e José Gomes (casado com a requerente Maria de Lourdes Batista Gomes - fl. 37).
Do mesmo modo, com o falecimento de João Gomes (fl. 43) e de José Gomes (fl. 39), parte da propriedade do imóvel foi transmitida não só às requerentes como aos filhos dos casais (fls. 37/43). O mesmo se deu em relação às herdeiras netas, Terezinha Aparecida Vicente Quintino e Maria de Fátima Vicente, filhas de Irene Gomes Vicente (fl. 244).
Como se sabe, a saisine é uma das exceções ao princípio de que a propriedade imóvel somente se adquire pelo registro.
O registro, na sucessão causa mortis, não tem efeito constitutivo do domínio, mas tão somente regularizatório, permitindo ao herdeiro ingressar na cadeia registrária e futuramente alienar o imóvel a título derivado.
No caso concreto, como visto, a posse de Avelino Gomes, titular do domínio falecido, foi transmitida aos herdeiros, os quais, por sua vez, a transmitiram às requerentes com a mesma natureza.
Neste contexto, não resta dúvida de que as requerentes podem fazer uso do período de posse dos antecessores nos termos do artigo 1.243 do Código Civil, notadamente diante da informação de que residiram no imóvel e o locam atualmente (fls. 51/60) e porque há anuência de todos os herdeiros com o pedido (fls. 37/43 e 394/420), a confirmar que são as únicas possuidoras pelo prazo legal com animus domini.
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Cf. CSMSP - Apelação Cível 1020452-68.2024.8.26.0100, Rel. Des. Francisco Eduardo Loureiro, j.29/05/2024.
Confira aqui o inteiro teor do acórdão.
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