Segundo o Código de Processo Civil, havendo testamento válido, o inventário e a partilha devem ser processados apenas judicialmente (CPC, art. 619).
Nada obstante, em desejável interpretação evolutiva da norma, as Corregedorias Gerais da Justiça e o próprio Superior Tribunal de Justiça têm permitido a realização da escritura pública, mesmo na existência de testamento deixado pelo falecido, desde que haja autorização específica do juízo sucessório para a lavratura do instrumento notarial.
Confira-se a posição do STJ:
As legislações contemporâneas têm estimulado a autonomia da vontade, a desjudicialização dos conflitos e a adoção de métodos adequados de resolução das controvérsias, de modo que a via judicial deve ser reservada somente à hipótese em que houver litígio entre os herdeiros sobre o testamento que influencie na resolução do inventário. (...) uma interpretação sistemática do art. 610, caput e § 1º, do CPC/15, especialmente à luz dos arts. 2.015 e 2.016, ambos do CC/2002, igualmente demonstra ser acertada a conclusão de que, sendo os herdeiros capazes e concordes, não há óbice ao inventário extrajudicial, ainda que haja testamento, nos termos, inclusive, de precedente da 4ª Turma desta Corte. (STJ - REsp .951.456/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j.23/8/2022).
Nessa diretriz, no Estado de São Paulo a Corregedoria Geral da Justiça, em suas Normas de Serviço (Cap. XVI, item 130), sedimentou a possibilidade da via extrajudicial, mesmo quando existente testamento:
130. Diante da expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, que constituirá título hábil para o registro imobiliário.
Destarte, atualmente, à luz da referida interpretação, com as cautelas inerentes à hipótese, é possível que seja lavrada escritura pública de inventário e partilha mesmo que haja testamento válido deixado pelo autor da herança.
Em passo seguinte, sob a ótica da qualificação registral, surge relevante questão: compete ao Oficial do Registro de Imóveis aferir se no caso concreto a escritura de partilha causa mortis atendeu efetivamente a vontade do testador? Seria esta aferição da alçada exclusiva do notário?
Em interessante precedente enfrentando o tema, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo entendeu que caso a vontade do testador, manifestada em vida, não seja fielmente observada por ocasião da escritura de inventário e partilha, será o caso de devolução do instrumento notarial para sua adequação.
Confira-se a manifestação do eminente Corregedor-Geral da Justiça, des. Francisco Eduardo Loureiro:
A desqualificação do título, como bem concluíram o Oficial e o MM. Juiz Corregedor Permanente, está correta, pois a escritura de inventário e partilha apresentada a registro não espelha a vontade instrumentalizada na escritura de testamento . Nem se argumente que o vício apontado não poderia ser indicado em exame de qualificação. Com efeito, se até o título judicial está sujeito à qualificação, o título extrajudicial que, no caso, substitui o formal de partilha, também está. E a desqualificação aqui apontada é resultado de exame de legalidade do título, uma vez que a busca pela preservação da real vontade do testador decorre de texto expresso de Lei (art. 1.899 do CC).
Concluiu o voto-condutor do acórdão:
Vou mais longe. Os inventários que contêm disposições testamentárias, a princípio e por força de lei, devem processar-se em juízo, exatamente para que a vontade do testador seja fielmente observada. Admitiu-se por entendimento na esfera administrativa que, após o registro do testamento, a partilha fosse levada a efeito na esfera extrajudicial. Não cabe ao tabelião, contudo, aventurar-se em interpretação criativa, que não reflita com exatidão e clareza a vontade do testador. O desejo de herdeiros que implique em interpretação duvidosa da vontade do testador está fora e além da autonomia do tabelião, ou, em outras palavras, circunscrita à esfera jurisdicional. Não merece registro escritura de partilha extrajudicial na qual a interpretação conferida pelos herdeiros, legatários e tabelião destoa de modo claro da vontade do testador.
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